Como assim a literatura clássica pode nos ensinar algo sobre o gênero neutro? Calma, continue lendo que eu te explico.
Se você é frequentador desse espaço virtual que chamamos de internet brasileira, com certeza já se deparou com dezenas de polêmicas. Algumas importantes, outras sem sentido algum, e algumas que não fazemos ideia de como começaram e qual o ponto.
Uma das mais atuais, mas que já vem sendo debatida há algum tempo é a questão do gênero neutro.
Veja bem, não quero dizer que essa discussão é sem sentido e banal. Afinal toda discussão que busca aprimorar nossa relação enquanto indivíduos e participantes de uma sociedade, a fim de tornar nossa realidade mais inclusiva e menos preconceituosa, deve ser levada em consideração.
Dito isso, eu enxergo três abordagens para essa problemática:
- A primeira é a mais rasa e busca esvaziar a discussão. Com discursos superficiais, os defensores dessa posição tratam a temática como mero “mimimi” e uma “destruição da língua portuguesa”. Afinal, a língua não é machista, ou sexista, de forma alguma.
- A segunda abordagem é a defesa total da chama “linguagem neutra”. Isso porque, segundo essa posição, a língua portuguesa pode ser muito machista. São pessoas que defendem colocar um “x”, um “@” ou mesmo um “e” no lugar da vogal que serviria para definir o gênero de um adjetivo. Exemplos: Alunxs, professor@s, menines, etc.
- Por fim, temos uma mais posição mais centrada. Que defende que a linguagem, enquanto construção social, é sim recheada de preconceitos e por isso pode ser melhor desenvolvida. Contudo, a linguagem neutra acaba não sendo tão acessível por excluir parcela da população. Isso porque ao colocar um “x” ou um “@” nas palavras, impossibilita a compreensão por pessoas que precisam utilizar leitores digitais, e atrapalham muito pessoas com dificuldade de leitura.
Me abstenho aqui de comentar as duas primeiras, por falta de capacidade teórica mesmo. Portanto pretendo nesse texto me debruçar sobre a primeira posição: a do descrédito total.
Essa primeira posição aqui descrita, trata o tema como puro mimimi, dizendo que não se trata de um machismo inato a língua, mas antes de uma interpretação errônea por parte dessa “geração lacradora”.
O que essa posição falha ao reconhecer é que a linguagem, como toda tecnologia humana, é uma construção social, fruto de seu tempo e que demonstra as diferentes posições em disputa numa determinada sociedade, num determinado tempo histórico. Portanto é possível sim que a língua seja preconceituosa.
Ora vejamos, se o Brasil foi criado em cima de um processo de escravidão violento e genocida, é óbvio que isso iria se refletir na linguagem. Pois os termos criados por esse “detentores da linguagem” iriam refletir seus ideias racistas.
Por isso é tão importante, como ressalta o Portal Geledés, abolir alguns termos racista da nossa fala, tais como “denegrir” ou “Serviço de preto”.
“Mas não podemos ressignificar os termos?” poderia me perguntar um defensor dessa linha de raciocínio. Até poderíamos, se isso não fosse uma violência com pessoas que sofrem essas opressões cotidianamente.
Além disso, se você defende que a língua não precisa ser mudada justamente por essa questão da ressiginificação, você está criando uma armadilha contra seu próprio posicionamento.
Pois, se a língua é viva e dinâmica, por que não podemos alterar alguns termos? A língua como toda construção humana está em constante mutação.
E agora eu chego ao ponto que pretendia com o início do texto.
Quero mostrar como a literatura clássica brasileira apresenta um dialeto todo próprio, que pode até ser entendi como outra língua. Para esboçar meu ponto trago dois trechos do livro “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, escrito em 1890.
“- Olha quem vem aí!
O Cortiço / Aluísio de Azevedo. – 3. ed. Jandira, SP: Principis, 2019, pág 52.
– Olé! Bravo! É Rita Baiana!
– Já te fazíamos morta enterrada!
– E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?…
– Então coisa-ruim! Por onde andaste atirando esses quartos?
– Desta vez a coisa foi de esticar, hein?!”
“- Quer dizer que me fará guerra…
– Valha-me Deus, criatura! Não faço guerra a ninguém! Guerra está você a fazer-me, que não me quer deixar comer uma migalha da bela fatia que lhe vou meter no papo!… O Miranda hoje tem para mais de mil contos de réis! Agora fique sabendo que a coisa não é assim também tão fácil, como lhe parece talvez…”
O Cortiço / Aluísio de Azevedo. – 3. ed. Jandira, SP: Principis, 2019, pág 136.
E aí, entendeu 100% do que foi escrito pelo autor maranhense? Provavelmente não, até por que falta o contexto.
Na primeira passagem trata-se da apresentação de Rita Baiana, personagem que será muito importante para a trama do livro, e que nesse momento retorno ao cortiço em que a história se passa e onde mora, após meses vivendo de amor ao lado do mais recente amante.
No segundo trecho temos João Romão, dono do cortiço, tratando com Botelho acerca de seu casamento com a filha de Miranda, barão e vizinho do cortiço.
Agora com um pouco de contexto talvez você tenha entendido melhor. Mas há ainda um gap que impede a compreensão integral do texto. Há um espaço de tempo e de costumes, que tornam a língua portuguesa falada no século XIX estranha para nós, falantes de português do século XXI.
Não são apenas palavras diferentes. São outras expressões, outros maneirismo, outras regras formais mesmo da língua.
E se a língua mudou tanto de lá pra cá, o que impede de continuar mudando. De fato, nada! Afinal ela continua em transformação diariamente.
Então, por que não assumir isso com um movimento consciente na tentativa de tornar a língua mais inclusiva para todes?
E apenas para encerrar esse texto, que acabou ficando maior do que o planejado, eu gostaria de dizer que linguagem neutra, ou inclusiva se preferir, não é algo pronto, dado e acabado. É objeto de muita discussão e debate e que deve sim ser aprimorada. O que não podemos é simplesmente remover todo o mérito da discussão e renega-la ao posto de “mimimi” de internet.
Enfim, não sei como encerrar, isto posto, fiquem com um meme de qualidade duvidosa.
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