A série Ms. Marvel da Disney tem méritos e defeitos, mas com certeza a forma como abordou a questão delicada da cisão entre Índia e Paquistão foi um grande acerto. Mas isso é um mérito da Disney ou uma tendência comercial?
Desde que nos conhecemos por gente consumimos narrativas criadas nos EUA e na Europa, a dominância e hegemonia das produções americanas e em menor escala das europeias nos ensinou a ver o mundo com os olhos deles e não os nossos. Certas mentalidades consagradas de que os EUA são o país da liberdade, que na Europa tudo é perfeito, de que os árabes todos tendem a ser radicais, a Ásia é um bando de gente que come qualquer coisa e na África só há pobreza. Pode fazer um teste e perguntar a qualquer um na rua que ele vai corroborar esses absurdos construídos pelos europeus e estadunidenses.
Estamos vivenciando uma mudança de mentalidade ou é apenas resultado de pressão?
Nos últimos anos, devido a pressões internas e o medo de perder dinheiro as empresas passaram a demonstrar um pouco mais de cuidado com determinados assuntos. Dentre essas empresas no campo do entretenimento a mais conhecida e significativamente de maior alcance é a Disney. Dona da Marvel que possuiu alguns milhares de personagens, sendo vários deles de países da dita periferia do mundo. Esperta como ela é, a Disney tem contratado artistas e profissionais oriundos desses países, o que de certa forma tem mudado a cara de seus produtos.
O aspecto mais importante dessa mudança, junto com a diversidade, é como retratam as histórias. Claro, tudo está devidamente adaptado para o famoso filtro família americana da Disney. Mas isso depende muito de qual país estamos tratando. O filme da Viúva Negra por exemplo manteve todos os clichês de russos maus, decadentes e fracassados e estadunidenses bonzinhos defensores da liberdade. Já em Moonknight , a escolha do diretor egípcio Mohamed Diab para dirigir a maior parte dos episódios se provou acertada. As representações do Egito foram nitidamente mais realistas e menos parecidas com os eternos clichês de hollywood. A presença da atriz egípcia/palestina May Calamawy também foi importante e ao menos cá na minha bolha não ouvi muitas reclamações de falta de representatividade.
Representatividade importa, mas não adianta nada se for vazia.
Mas vamos a Ms. Marvel, que é o motivo pelo qual escrevi este artigo. A despeito de várias críticas, a série foi a bem sucedida quando se trata de retratar a comunidade indo-paquistanesa. Desde o elenco passando pela equipe de produção e direção, quase todos tem origens em ambos os países. O tema da divisão entre Índia e Paquistão continua atual devido aos conflitos étnicos e religiosos muito comuns na região. Ambos os países possuem armas nucleares e isso torna tudo mais complexo. As cicatrizes formadas dificilmente são esquecidas com o passar dos anos.
O conflito no qual pessoas foram forçadas a abandonar seus lares é o pano de fundo da série. E como se trata de um conflito, versões de ambos os lados vem a tona, mas geralmente são versões oficiais, ou seja enviesadas. O que a série fez de forma perspicaz foi retratar tudo do ponto de vista do lado mais fraco. O destaque ficou para as pessoas que ali viviam e tiveram suas vidas destruídas ou mudadas por toda aquela situação.
Ms. Marvel não é uma série épica de super herói. É uma série feita para adolescentes falando de outra adolescente, mas não significa que não tenha valor e não possa passar lições importantes. A série aborda questões até polêmicas como o papel da mulher no islã, racismo, imigração, segregação de maneira leve e inteligente. Eu continuo sendo extremamente crítica a Disney sobre diversos assuntos, mas confesso que estou ansiosa pelo retorno de Kamala!
Mulher trans autista, TDAH, game (narrative) designer, geógrafa, apaixonada por rpg, nerdices, gotiquices, japanices e por esportes.