O Oscar se vende como a maior premiação do cinema mundial. E talvez o seja. Mas é sempre bom lembrar de que se trata de um prêmio ao Ocidente antes de mais nada.
Sim, eu entendo a importância da premiação para as realizações da sétima arte. E não, eu não estou esquecendo das contribuições da Academia para alguns avanços importantes na indústria cinematográfica. Mas, antes de mais nada vale lembrar que esses avanços nunca vieram de mão beijada. Pelo contrário, a Academia sempre atuou de maneira reativa, respondendo às provocações e demandas sociais que surgem para fora de si. Ou seja, a Academia nunca provoca essas mudanças, ela simplesmente absorve quando é conveniente, ou quando elas ficam grandes de mais para ignorar.
Em segundo lugar vale lembrar, e o Oscar desse ano não deixa esquecer, que a premiação toda é uma ode ao cinema ocidental, aos valores do Norte Global e, principalmente, à Hollywood. Ou seja, o Oscar é um prêmio ao Ocidente
É eu sei, esse último ponto é meio óbvio. Afinal, é uma premiação feita por Hollywood, cujos votantes são quase que exclusivamente de Hollywood. E não é pra menos, pois a maior parte das superproduções do último século vem de lá.
Mas, claro que é sempre bom lembrar que isso não é por acaso. A indústria cinematográfica estadunidense faz um lobby fortíssimo para levar suas produções para o mundo todo. É esse o globalismo que o Norte prega. Levar sua cultura, suas músicas, seus filmes, sua comida, seu idioma para o Sul, mas sem jamais receber nossos refugiados em troca. É por isso que nosso país está recheado de McDonald’s e nossas salas de exibição tem nome em inglês e só passam filme gringo. Aliás, é por isso também que a cota de tela é tão importanta. Contudo, isso é tópico para outro papo.
Tá, eu sei também que, talvez a contragosto, a Academia vem promovendo mudanças. Que, sinceramente também, talvez sejam mais pra inglês ver. Porém, não dá pra negar que houveram mudanças. Em 2024, por exemplo, três filmes estrangeiros concorreram na categoria principal: “Anatomia de Uma Queda” (França), “Vidas Passadas” (Coreia do Sul) e “Zona de Interesse” (Reino Unido). Além disso, o Oscar respondeu a campanha #OscarSoWhite (#OscarTãoBranco) e já há alguns anos vem indicando atores e atrizes não branco. Esse ano inclusive tivemos a primeira atriz indígena indicada da história.
O Oscar é um prêmio ao Ocidente
Mas, e apesar de tudo isso, o Oscar não nos deixa esquecer de que trata-se de um prêmio ao Ocidente, com os valores do Norte. Um bom exemplo disso é “Barbie“, de Greta Gerwig. “Barbie” é um filme importante, que trata de tópicos delicados, que no entanto devem e merecer ser constantemente debatidos. Porém, o filme é tão verborrágico que parece querer falar de tudo e se perde em meio a discursos rasos e argumentos sem profundidade. Isso se deve, eu acho, ao estilo de escrita da dupla que assina o roteiro, Noah Baumbach e a própria Greta Gerwig. Veja, eu não os acho ruins, nem medíocres. Longe disso! Mas sinto que nesse filme eles pesaram a mão e se perderam no próprio estilo de escrita.
Porém o segundo ponto, talvez seja mais importante. “Barbie” se perde nas curvas do feminismo liberal. Um feminismo que prega emancipação para mulheres, sem nunca questionar outras formas estruturais de opressão, como o capitalismo. Um discurso que bate no machismo e no patriarcado, mas continua reforçando a ilusão da meritocracia. Em outras palavras, um beco sem saída. E é aí que mora o perigo. Reforçar Barbie como um filme empoderador para as mulheres, ou menos fazer isso sem críticas, é abraçar os limites e contradições do feminismo liberal. Mas Hollywood só pode ir até certo ponto, não é mesmo? Afinal, ainda estamos falando de show BUSSINES.
Outro fator que corrobora minha tese de que o Oscar é um prêmio ao Ocidente, é a rapa que “Oppenheimer” fez na premiação desse ano. Não me entendam mal, o longa é excelente enquanto produção cinematográfica, talvez o melhor de Christopher Nolan. No entanto, não dá pra negar que é mais um daqueles filmes que mostram como os Estados Unidos se sentem mal por fazer atrocidades. Eles não vão parar, vejam bem, mas se sentem mal.
O meme não estava errado. Os EUA vão invadir seu país, matar suas crianças e depois fazer um filme meloso sobre como seus soldados ficaram triste quando puxaram o gatilho.
Outra prova disso é que a primeira mulher a vencer a categoria de Melhor Direção foi Kathryn Ann Bigelow em 2010, justamente por seu trabalho no filme “Guerra ao Terror“. Ou seja, um mulher venceu. Viva! Bem progressista, nada machista. Mas não se esqueçam que essa mulher é americana.
Filmes indicados em categoria “menores”
Além disso, outros filmes que concorrem em categorias “menores” também provam o ponto do Oscar ser um prêmio ao Ocidente.
O filme ucraniano “20 Days in Mariupol” foi o vencedor na categoria Melhor Documentário de Longa-Metragem. O documentário narra do ponto de vista das tropas e cidadãos ucranianos a guerra da Rússia contra a Ucrânia, e a invasão do último pelo primeiro país. Sim, a guerra é horrível, pode ter suas justificativas, mas continua sendo horrível. Inocentes morrem, países inteiros são arrasados e quem não fica gravemente ferido, nunca mais volta a ser o mesmo, mental e emocionalmente. Contudo, o documentário é uma grande propaganda anti-Rússia.
Veja bem, longe de mim defender Putin. E não se deixem enganar a Rússia não é a União Soviética. Não se trata de um grande esquema “comunista”. É uma disputa interimperialista no sistema capitalista. Só que em nenhum momento no filme se questiona as ações do presidente da Ucrânia, Vladimir Zelesnki. Em nenhum momento do filme é mencionado a atuação dos países ocidentais, em especial dos Estados Unidos, que levou a eclosão do conflito armado. O filme todo faz parecer que Putin é um grande vilão de quadrinhos que provocou essa guerra sozinho com seus planos de dominar o mundo e que a Ucrânia agora está largada a própria sorte nas mãos desse ser vil.
Novamente, Putin não é flor que se cheire. Mas e as negociações de paz? E o presidente da Ucrânia? Em vez de ir atrás de mais armas e mais dinheiro como um mafioso ganancioso, poderia estar sentando para negociar e preservar a vida de seus cidadãos, incluindo crianças, que estão morrendo aos montes, como o documento bem mostra. Os Estados Unidos, por exemplo, poderiam parar de enviar bilhões de dólares em dinheiro e equipamentos militares para financiar a guerra e começar a financiar ajuda humanitária e negociações de cessar fogo. Mas parece que eles preferem premiar documentários que filmam a tragédia ao invés de interrompê-la.
Só pra fechar esse ponto, vale citar que antes de “20 Days in Mariupol”, no ano anterior, então em 2023, quem venceu essa mesma categoria foi o documentário “Navalny“. Filme que narra a carreira e a tentativa de assassinato de Alexei Navalny, milionário russo e principal adversário político de Vladimir Putin, que também tem ligações tenebrosas com a extrema-direita russa, mas que mesmo assim virou coqueluche e um símbolo democrata para a imprensa brasileira capacho dos Estados Unidos. Rolou até um “In Memorian” para Navalny no Oscar 2024, pois ele foi assassinado na prisão. De novo, Putin não é um cara legal. Tampouco era Navalny.
Outro exemplo de que o Oscar é um prêmio ao Ocidente é a indicação do filme “Golda“, dirigido por Guy Nattivl. E aqui devemos ter muito cuidado. Pois nesse terreno é muito fácil escorregar em cascas de banana e ceder ao antissemitismo. E não se trata disso. Não se trata de cair na fábula da extrema-direita de que os judeus dominam Hollywood, ou comprar o esteriótipo preconceituoso do judeu rico que controla tudo.
Porém a indicação de “Golda” passa uma mensagem para o mundo. Uma mensagem de que os EUA estão 100% fechados com Israel e Hollywood vai reforçar esse posicionamento até o final. Pois, “Golda” é uma clara propaganda sionista. E, de novo, não confundam sionismo com semitismo, afinal existem milhares de judeus antissionistas pelo mundo.
O filme todo é narrado do ponto de vista da ex-primeira ministra Golda Meir, a Dama de Ferro de Israel, enfrentou durante a Guerra do Yom Kippur. Os demais países são vistos hora como inimigo hostil, os árabes selvagens que decidem atacar do nada e, o pior, no meio de um feriado religioso, hora como bestas gananciosas massacradas pelo brioso exército israelense, graças a ganância dos líderes vizinhos e a inteligente estratégia da Dama de Ferro de Israel.
Eu gosto inclusive de uma crítica no Letterboxd que diz que:
“a palavra ‘palestina’ não é dita nunca nesse filme”.
Afinal, é bem isso. Trata-se de uma bela peça publicitária sionista, que defende a única democracia completa no oriente médio. E esse é justamente o ponto de vista do Ocidente, por isso não faz sentido falar em Palestina”. E é por isso que esse filme está aqui. Ok, é um indicação “menor” apenas para maquiagem, que está muito bem feita, devemos dar o braço a torcer nesse ponto. Mas a Academia sabe do seu poder de amplificar filmes simplesmente os indicando na premiação. Ninguém é inocente na política e o cinema é político.
Há espaço para discordância
Enfim, me empolguei demais na escrita desse texto, como é de costume. Antes de encerrar apenas permita me dizer que eu reconheço que existem disputas nesse espaço. O Miyazaki recusou em 2024 a estatueta pela segunda vez, a primeira foi em 2003. E isso passa sim uma mensagem. Além disso, a fala de Jonathan Glazer ao receber o prêmio de Melhor Filme estrangeiro também é bem simbólica e abala o discurso oficial, abrindo brecha para divergências na indústria e na política.
Mas qual o limite dessas disputas? Hollywood sempre foi e sempre será Ocidental. E o business vem antes do show. Então como respondemos a isso? Nos podamos e nos limitamos para caber nas caixinhas deles? Ou desafiamos ao máximo os limites, conscientes de que as respostas que precisamos não virão de lá? Me parece muito claro a respostas. Contudo, isso não impede que eu me divirta com os filminhos bobos do Oscar no meio tempo.
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Valdirzera é definitivamente um dos autores do InduTalks. Fez filosofia, mas se formou em Publicidade e Propaganda. Adora quadrinhos, livros, série, filmes e todo tipo de nerdice. É apaixonado por produção audiovisual e sonha em um dia dirigir um longa metragem.